Se você passear pelas montanhas ao norte dos Alpes italianos, talvez encontre um holandês de 41 anos chamado Martijn Doolaard, trabalhando de forma diligente e calma em sua cabana de pedra. Martijn, que antes era designer gráfico, passa agora seus dias reformando uma antiga propriedade, isolada da cidade, que costumava abrigar vacas e outros animais. Com um olhar artístico para a beleza do lugar, ele compartilha suas tarefas em seu canal no YouTube.
Para mim, o canal de Martijn está entre as melhores coisas que a internet tem a oferecer. Há anos, eu e minha esposa acompanhamos seus episódios (cuja qualidade não fica atrás de nenhuma série do Netflix) e provavelmente é a “série” que ficamos mais ansiosos pelo próximo capítulo. Ironicamente, não há ansiedade alguma em seus vídeos — apenas um homem de poucas palavras em um estilo de vídeo relaxante e cenário encantador.
Embora Martijn tenha trabalhado com computadores, hoje ele faz algo completamente diferente. Precisa construir um septic system? Ele constrói. Cimentar o chão? Sem problemas. Que tal um galinheiro? Feito. Desde grandes obras estruturais até projetos menores, como criar ferramentas simples ou um banco para sentar e tomar café nas gélidas manhãs de inverno, fazem parte do seu cotidiano. Ele não busca perfeição profissional nem vende seus serviços; apenas atende suas próprias necessidades, encontrando alegria na criação e beleza nos detalhes mais simples.
Na Engenharia de Software, poderíamos aprender muito com a abordagem de Martijn. Hoje em dia, especialmente após as ferramentas de IA se tornarem tão onipresentes, percebo uma certa hostilidade em relação a projetos casuais ou desenvolvido por amadores. Muitos profissionais da área desprezam a ideia de "vibe coding", esse nome marketeiro para denominar o processo de criação de um software sem os devidos “cuidados” técnicos. Mas por que isso deveria nos incomodar?
Quando alguém constrói uma ferramenta para uso pessoal — ainda que imperfeita —isso já pode ser considerado um sucesso. Quem se importa se não a abordagem escolhida não é ótima ou se existem vulnerabilidades? O importante é o prazer da criação e o aprendizado que vem do processo. Sempre me lembro de como entrei na área de desenvolvimento web: eu era uma espécie de “redator” de um site de apostas esportivas e poker online, e queria ter um controle dos textos que escrevia e quanto deveria receber no final do mês. O que poderia ter sido uma simples planilha virou uma desculpa para criar meu primeiro app, que acabou virando portfólio, sendo posteriormente apresentado em uma entrevista que me garantiu o primeiro emprego na área.
Quando vejo o trabalho calmo e diligente, porém desafiador, de Martijn, percebo como temos sorte enquanto programadores. Nossa caixa de ferramentas cresce diariamente, permitindo tentarmos projetos que antes nunca sairiam do papel. Quisera eu existisse algo semelhante para marcenaria ou jardinagem! Por que não incentivar as pessoas a utilizarem a tecnologia livremente? Se fizerem mau uso ou não abusarem da IA, paciência. Imperfeições são naturais; no final das contas, somente produtos realmente úteis irão sobreviver.
Gostaria que mais pessoas adotassem a filosofia de Martijn Doolaard no desenvolvimento de software. Que se divirtam criando ferramentas para si mesmas. Se entregarem aplicativos quebrados ou venderem produtos ruins, tudo bem. Estarei lá como o especialista a quem recorrerão quando trabalhar de forma amadora não for mais suficiente — assim como Martijn consultaria alguém com mais experiência para nivelar adequadamente um piso. Nunca ouvi falar de alguém no setor de construção civil que se ofendesse ao saber de outra pessoa fazendo algo por conta própria.
Portanto, defendo uma mudança de mentalidade no Zeitgeist atual: deixem as pessoas experimentarem livremente. Quanto mais gente envolvida, mais potencial de colaboração e maior demanda por expertise. Se um amador consegue criar algo decente com IA, imagine a vantagem que desenvolvedores experientes terão ao dominá-las.
Celebremos o poder do software e da IA, inspirados pelo espírito criativo e tranquilo que Martijn Doolaard demonstra diariamente nos Alpes.
Esse artigo foi publicado originalmente em inglês: Not every programmer needs to be a professional